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sexta-feira, 10 de maio de 2013

DISCURSO DO MÉTODO
(RESUMO)


Identificação da obra: DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução: Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2006.


Inexiste no mundo coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem.
Meu propósito não é ensinar aqui o método que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo me esforcei por conduzir a minha. Nada direi a respeito da filosofia, exceto que, vendo que foi cultivada pelos mais elevados espíritos que viveram desde muitos séculos e que, apesar disso, nela ainda não se encontra uma única coisa a respeito da qual não haja discussão, e consequentemente que não seja duvidosa.
Após dedicar-me por alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em procurar adquirir alguma experiência, tomei um dia a decisão de estudar também a mim próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos que iria seguir [...] Acreditei com firmeza em que, por este meio, conseguiria conduzir minha vida muito melhor do que se a construísse apenas sobre velhos alicerces e me apoiasse tão somente sobre princípios a respeito dos quais me deixara convencer em minha juventude, sem ter nunca analisado se eram verdadeiros.
Em lugar do grande número de preceitos de que se compõe a lógica, achei que me seriam suficientes os quatro seguintes, uma vez que tornasse a firme e inalterável resolução de não deixar uma só vez de observá-los. O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu não conhecesse claramente como tal [...]. O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias a fim de melhor solucioná-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos [...]. E o último, o de efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir.
Depois, havendo percebido que, a fim de conhecê-las, ser-me-ia algumas vezes necessário considerá-las cada qual em particular, e outras vezes apenas de reter, ou de compreender, várias em conjunto, julguei que, para melhor considerá-las em particular, deveria presumi-las em linhas, visto que não encontraria nada mais simples, nem que pudesse representar mais diferentemente à minha imaginação e aos meus sentidos; mas que, para reter, ou compreender, várias em conjunto, era necessário que eu as designasse por alguns signos, os mais breves possíveis, e que, por esse meio, tomaria de empréstimo o melhor da análise geométrica e da álgebra, e corrigiria todos os defeitos de uma pela outra.
No entanto, o que mais me satisfazia nesse método era o fato de que, por ele, tinha certeza de usar em tudo minha razão, se não à perfeição, ao menos o melhor que eu pudesse.
Concebi para mim mesmo uma moral provisória, que consistia apenas em três ou quatro máximas que eu quero vos anunciar. A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, mantendo-me na religião na qual Deus me concedera a graça de ser instruído a partir da infância, e conduzindo-me, em tudo o mais, de acordo com as opiniões mais moderadas e as mais distantes do excesso, que fossem comumente aceitas pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de conviver.  Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e decidido possível em minhas ações [...]. Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do que ao destino, e de antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo [...]. Depois de haver-me assim assegurado destas máximas, e de tê-las separado, com as verdades da fé, que sempre foram as primeiras na minha crença, julguei que, quanto a todo o restante de minhas opiniões, podia livremente procurar desfazer-me delas.
Porém, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era falso, fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, ao notar que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo, julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da filosofia que eu procurava.
Depois disso, considerei o que é necessário a uma proposição para ser verdadeira e correta; pois, já que encontrara uma que eu sabia ser exatamente assim, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. E, ao perceber que nada há no eu penso, logo existo, que me dê a certeza de que digo a verdade, salvo que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, concluí que poderia tomar por regra geral que as coisas que concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras, havendo somente alguma dificuldade em notar bem quais são as que concebemos distintamente.
Em princípio, aquilo mesmo que há pouco tomei como regra, ou seja, que as coisas que concebemos bastante evidente e distintamente são todas verdadeiras, não é correto a não ser porque Deus é ou existe, e é um ser perfeito, e porque tudo o que existe em nós se origina dele. De onde se conclui que as nossas ideias ou noções, por serem coisas reais e oriundas de Deus em tudo em que são evidentes e distintas, só podem por isso ser verdadeiras.
Atrevo-me a afirmar que não apenas encontrei modo de me satisfazer em pouco tempo no tocante a todas as mais importantes dificuldades que costumam ser enfrentadas na filosofia, mas também que percebi certas leis que Deus estabeleceu de tal modo na natureza, e das quais imprimiu tais noções em nossas almas que, após meditar bastante acerca delas, não poderíamos pôr em dúvida que não fossem exatamente observadas em tudo o que existe ou se faz no mundo. Em seguida, atentando para a sequência dessas leis, creio haver descoberto muitas verdades mais úteis e mais importantes do que tudo quanto aprendera até então, ou mesmo esperava aprender.
Em princípio, procurei encontrar os princípios, ou causas primeiras, de tudo quanto existe, ou pode existir, no mundo, sem nada considerar, para tal efeito, senão Deus, que o criou, nem tirá-las de outra parte, salvo de certas sementes de verdades que existem naturalmente em nossas almas. Em seguida, examinei quais são os primeiros e os mais comuns efeitos que se podem deduzir dessas causas [...]. Quero que se saiba que o pouco que aprendi até agora não é quase nada em comparação com o que ignoro, e que não desanimo de poder aprender [...].
Ademais, não pretendo falar aqui a respeito dos progressos que no futuro espero fazer nas ciências, nem me comprometer em relação ao público com qualquer promessa que eu não esteja seguro de cumprir: mas direi unicamente que decidi não empregar o tempo de vida que me resta em outra coisa que não seja tentar adquirir algum conhecimento da natureza [...].